À procura
Taiane Sena
Um conto
A garota
E era movida por
palavras. Vivia somente por isso. Ela não tinha casa, nem família, nem direção.
O que a restava era sua máquina de escrever, algumas folhas e um coração, que
fora machucado uma vez, mas jurara a si mesma que nunca, nunca iria se machucar
de novo. E escrevia. Ela escrevia sobre amor, ódio, tristeza, solidão. Seria
uma ótima escritora, se tivesse a oportunidade. Era a garota do futuro prendida
ao passado. Vestia roupas estranhas e sapatos considerados
"ultrapassados". Mas era o jeito dela. O jeito doce, puro e feliz.
Quase feliz. Sabe, ela gostava de flores. Pequenas, grandes, bonitas,
cheirosas, brancas, vermelhas, em botão, murchas, desenhadas por ela mesma.
Eram flores. Mas a vida não se resume só a isso. Andava por estradas
consideravelmente sujas, não tinha direção. Andava procurando por inspiração.
Às vezes, rabiscava duas ou três palavras numa folha de papel meio amassada,
mas tinha cuidado ao escrever, para a tinta não acabar. Ela ainda não tivera a
sorte de achar uma pena por aí. Ouvia por aí críticas, palavras estranhas,
rudes. Mas ela não entendia essas palavras. Chorou umas vezes, sobre a relva.
Aquele mundo lhe parecia muito estranho. E a máquina de escrever registrava
tudo. Desde o choro até o adormecimento da "Bela". Mas não lhe davam
crédito. Suas histórias pareciam tolas de mais para aqueles sábios ou sei lá o
quê. Disso ela não entendia. Na verdade, não entendia nada. Só sabia escrever.
Escrever sobre seus sentimentos. E era julgada por isso também, por alguns, por
pensar com o coração. Mas era mentira, ela pensava antes com a mente, para agir
com o coração. E fechava os olhos, só para sonhar um pouco. Sonhar que tinha
uma família de verdade, que tinha amigos de verdade, que tinha um amor de
verdade. E adormecia. Em qualquer lugar, não tinha paradeiro. E logo depois
"Puxa, como sonhei!". E se machucava mais um pouco. Teve um dia que
sonhou que as pessoas lhe entendiam. Mas, logo depois, acordou. Tinha caído do
banco do parque. E se machucou, tanto por fora, quanto por dentro. Seus joelhos
ralaram, mas seu coração estava despedaçado. Tudo que sonhara era mentira.
Tudo, tudo.
Era uma vez uma menina
Que vagava sozinha pelas ruas
E ela me ensina
Que a imaginação é toda sua.
E deitada num banco de uma praça
Ou na relva, num parque
O seu livro ela abraça
E me diz tudo o que sabe.
Capítulo 1
O começo
Brasil, 1969
Havia uma garota deitada no chão sobre
pedaços de papelão. Embora o Rio seja um estado quente, estava frio,
chovendo. E ela estava lá, intocável. Dava para perceber que estava com frio e
fome. Mordia os lábios e passava os pés um no outro para aquecê-los. Estava
abraçada a um livro. Já era noite e a única coisa que ela queria era dormir.
Acordara com um movimento nas ruas, e notou
que escuridão da noite já não estava mais lá. Era manhã, mais uma longa manhã e
o amanhã de ontem. Pensou em quantos “amanhãs” seriam iguais a ontem, tristes e
sem esperança. Encolheu-se.
Estava debaixo da
marquise da padaria. O cheiro de pão era tentador, mas deveria contentar-se
apenas com isso. Não tinha um tostão sequer.
Devem estar se
perguntando ‘O que uma menina de 10 anos está fazendo nas ruas?’. Ela não tem
família. Seus pais morreram há algum tempo. A única coisa que lhe restara fora
o livro que sua mãe lhe dera. Ela sabia ler, muito bem por sinal. Aprendera com
seus pais. E escrever era sua forma de vida.
- Sua imunda
desgraçada! Quantas vezes tenho que dizer para sair da frente da minha loja? –
gritava o padeiro, forçando-a a sair de lá.
- Me solte! Não estou fazendo mal a ninguém! – dizia a
menina.
- Não
quero mais vê-la aqui! Vá embora! E rápido! Agora! – gritava o homem fora de
si.
Só deu o tempo de
pegar seu livro, a única lembrança de seus pais. “Alice no país das maravilhas”
era o título.
Correu
o mais rápido que pôde. Mas, esbarrou em uma pessoa.
- Me
desculpe – disse a menina com a cabeça baixa.
- Ah,
tudo bem – disse outra garota de rua. – Alice no país das maravilhas! É o meu favorito! – exclamou a menina,
deixando a insegurança um pouco de lado.
- O meu
também! Meu nome é Sarah, e o seu? – sorriu, pela primeira vez, a menina.
- Lidia.
- Prazer.
As duas sorriram.
- Você deve gostar de ler, não é mesmo? - perguntou Sarah.
- Sim,
como você. E, nesse caso, preciso levá-la a um lugar – disse Lidia.
- Para
onde? – perguntou a menina Sarah, sabendo que se tratava de uma aventura.
- Ao
país das maravilhas – respondeu sua nova amiga.
- Nossa!
- Não é
maravilhoso, Sarah?
- É espetacular! –
os olhos de Sarah brilhavam como dois diamantes.
Estavam numa
biblioteca. Entraram pelos fundos, para não serem pegas.
Era uma ótima biblioteca. Estava repleta de títulos geniais.
Sarah e Lidia não se
limitavam a apenas olhar os livros. Elas os tocavam e os folheavam. O cheiro de
romance, terror, aventura e sonhos saía pelas páginas.
- Este lugar é
mágico! – exclamou Sarah.
- Sim... Era aqui
que meu pai me trazia, quando estava fora da prisão. – dizia com um tom triste.
- Seu
pai está preso? – perguntou a menina, voltando-se para Lidia.
-
Sim. E nunca mais o achei. Eu era muito pequena quando ele foi levado embora...
Não me lembro muito da aparência dele, mas lembro do jeito dele... – disse
Lidia, franzindo a testa, como se estivesse tentando se lembrar. E, depois de
uma pausa, completou - Ele me disse que foi preso por tentar fazer justiça. Só
não sei por que. Da última vez que o vi ele me disse para correr atrás de meus
sonhos...
Sarah
olhava para Lidia com certa pena. Tinha quase certeza de que o pai de Lidia
estava morto. Mas, como Lidia, também não sabia ao certo por quê. Justiça?
Talvez ele estivesse metido em coisas de liberdade de expressão ou teatro. Quem
luta por esses motivos é calado pelas pessoas da política.
E
Sarah limitou-se a dizer:
- E é
isso que vamos fazer: correr atrás de nossos sonhos – disse a menina,
arrancando um sorriso de Lidia. – Prometa que nunca irá esquecer-se de seus
sonhos. Nem dos meus. A partir de hoje, trabalharemos em equipe. Temos um propósito
na vida e vamos fazer isso juntas – disse Sarah, apertando a mão de Lidia, como
um trato.
Mas,
de repente, ouviu-se um estalo. O barulho era de alguém andando. O chão era de
madeira, então mesmo que a pessoa estivesse tomando cuidado para não fazer
barulho, era inevitável.
Então,
de repente, viram um coelho. Mas o que um coelho estava fazendo numa
biblioteca? Logo depois viram uma menina branca e loira, olhos claros e vestido
azul. O nome dela? Alice.
-
Mas é a Alice! – disseram em coro as duas meninas
Ouviram-se
mais passos. Mas, dessa vez, não era o coelho ou Alice. Era o bibliotecário.
Alice
e o coelho voltaram para onde o livro “Alice no país das maravilhas” estava.
-
Suas vermes podres! – gritou o bibliotecário, puxando as duas meninas pelas
orelhas.
- Por
favor, senhor, está nos machucando! – dizia Sarah
- O
problema não é meu! Vocês entraram na minha biblioteca! Suas meninas idiotas! –
gritava ainda mais o bibliotecário. Notava-se que em seus olhos haviam lágrimas
que eram por ele sufocadas.
- Não
jogue suas frustrações em cima de nós. Sei sua história, senhor. Estamos
passando pelo o mesmo! Estamos correndo atrás de nossos sonhos! – dizia Lidia,
contrariada.
-
Então quer dizer que o sonho de vocês é escrever? Perdoem-me ser tão sincero,
mas vocês NUNCA conseguirão! Terão mais sucesso se pedirem esmola nas ruas! Vão
embora! – ele dizia, repetindo tudo que disseram a ele há muitos anos atrás,
com rancor e lágrimas.
Infelizmente,
existem pessoas que descarregam suas mágoas em outras, mesmo sabendo que isso
dói, é como se fosse um alívio. Alívio saber que outros estão sofrendo assim
como você. Irônico, não?
Foram
embora correndo, antes que ele fizesse algo de ruim com elas. Mesmo assim,
conseguiam esboçar um sorriso em uníssono. Talvez pelo vento que batia em suas
faces, ou por terem encontrado Alice, ou mesmo por terem feito o trato. Ainda
poderia ser por terem alguém por quem cuidar. Alguém que pudesse ouvi-las. Uma a
outra. Uma amizade que acabara de nascer. E a mais provável teoria é de que era
a mistura de tudo isso junto.